"O Povo que Ainda Canta" - Polifonia de Lafões
No Vale do Vouga qualquer cantiga, tradicional ou moderna, se desdobra em duas ou três vozes. Ali a polifonia vem naturalmente a quem gosta de cantar, e a prática apura o ouvido. Aquilo que soa estranho e desentoado para quem está habituado à escala temperada e aos acordes fixos dos instrumentos modernos pelos quais afinam as vozes educadas é, ao invés, uma afinação deliberada entre vozes para se obter uma cor e uma textura determinadas. Alguém que sabe dar o tom certo sem diapasão, nem demasiado agudo nem demasiado grave para conforto de todos, homens e mulheres, começa a cantar. Acima da melodia principal projectam-se uma ou duas vozes de mulher em terça e a seguir o brilho da quinta, com a pequena dissonância necessária para produzir a nota final, áspera e carregada de energia, que se prolonga enquanto durar o fôlego e o prazer do acorde. Com muita sorte pode estar presente o raro guincho, que faz a oitava da voz principal sem pronunciar as palavras, de tão agudo que é, e que quem ouviu nunca mais esquece. É um canto de ar livre, que convive mal com salas fechadas e sistemas de amplificação. Um pequeno outeiro que permita cantar em semi-círculo para que todos se ouçam, de costas contra o vento que leve as vozes até longe, é tudo o que é preciso para que a alta voltagem do canto se liberte e percorra os corpos de quem canta e de quem ouve.