VISÃO HISTÓRIA: 100 Anos da Travessia Lisboa-Rio - Aventureiros Portugueses da Aviação
Em vésperas do centenário da travessia aérea do Atlântico Sul, a aventura atribulada de Gago Coutinho e de Sacadura Cabral é o tema de capa do novo número da revista VISÃO História. Uma oportunidade para recordar os pioneiros da aviação e os primeiros voos em Portugal e no mundo.
Passavam poucos minutos das 10h30 da manhã do dia 17 de Dezembro de 1903 quando um frágil e estranho aparelho alado feito de madeira, tela e cordas de piano, equipado com um motor de explosão de 12 cavalos, se ergueu da praia de Kitty Hawk, na Carolina do Norte, EUA, durante uns breves 12 segundos para percorrer uns escassos 37 metros até se precipitar na areia das dunas mais à frente. A proeza parece insignificante, mas representa uma das maiores conquistas da humanidade: o início da aviação realizada por aparelhos motorizados «mais pesados do que o ar».
O sonho de voar como as aves é tão antigo como o homem, mas foi a loucura saudável de pioneiros da aviação como os irmãos Wright, protagonistas do primeiro voo oficial acima descrito, que o tornou possível. Depois deles, o brasileiro Santos Dumont, o francês Louis Blériot ou o norte-americano Charles Lindberg deram novas asas ao sonho, cruzando terra e mar ao sabor de ventos e tempestades, com a vida suspensa nas alturas. Alguns desses gloriosos malucos das máquinas voadoras morreram cedo de mais, vítimas da sua coragem e ousadia, mas a época das grandes conquistas aéreas estava apenas a começar.
Por cá, a pacata zona ribeirinha de Belém foi palco das primeiras experimentações aeronáuticas, mas seria do campo de aviação da Amadora que partiriam os grandes raides dos anos 1920 e 1930 para os quatro cantos do Império, incluindo os «voos de soberania» para as antigas colónias de África. Antes da construção da Portela, era em Alverca que as primeiras companhias aéreas regulares operavam, mas houve um tempo em que o rio Tejo também servia de «pista» para os aviões pousarem.
A travessia aérea do Atlântico Sul, levada a cabo pela dupla Gago Coutinho e Sacadura Cabral, cujo centenário se comemora no próximo mês de Abril, acabou por ser o pretexto para a preparação da nova edição da VISÃO História, dedicada aos pioneiros da aviação em Portugal. As vidas dos protagonistas e a amizade que nasceu entre os dois oficiais da Armada nos sertões de Moçambique, a preparação da arrojada viagem, os instrumentos de navegação desenvolvidos propositadamente para cruzar o Atlântico, as peripécias da jornada (como a falta de gasolina para chegar ao destino) e ainda os banhos de multidão que acolheram os pilotos no Rio de Janeiro e em Lisboa são minuciosamente descritos no corpo central da revista. Como já é habitual, os textos são acompanhados por imagens de época criteriosamente seleccionadas, por uma infografia que mostra os objectos transportados a bordo do hidroavião, e ainda por um mapa com as etapas da aventura aérea.
Mas, se voar é hoje tão banal que são raras as pessoas que nunca o tenham feito, não era assim há cem anos. Depois de Gago Coutinho e de Sacadura Cabral, outros aviadores desafiaram as fronteiras dos céus. Essa grande aventura, que é evocada no novo número da VISÃO História, tem como balizas temporais os primórdios dos primórdios e a Segunda Guerra Mundial, antes de o transporte aéreo se generalizar. Assim, recordamos a epopeia do «Pátria», que ligou Lisboa a Macau quando os aparelhos eram adquiridos em segunda mão, através de sorteios, rifas e peditórios e, por isso, designados por «aviões de esmolas». Os pilotos, autênticos «ases pelos ares», viram-se transformados em heróis nacionais, até caírem em desgraça. Sarmento de Beires, aviador, poeta e opositor, que passou de aclamado a perseguido pela polícia política do Estado Novo, foi mesmo forçado a partir para o exílio.
Para conhecer a história de Carlos Bleck, o primeiro aviador civil a alcançar Goa num voo a solo, foi convidado o ex-comandante da TAP José Correia Guedes, autor de um livro onde revela as condições em que o destemido aventureiro enfrentou as tempestades de areia, os ventos fortíssimos e as ameaçadoras caravanas de beduínos que disparavam para o ar por tudo e por nada. E, ao mesmo tempo que enfrentava esses perigos, ainda tinha de fazer um esforço hercúleo para se manter acordado, pois o piloto automático ainda não tinha sido inventado.
É dado também espaço ao escritor e historiador aeronáutico Henriques-Mateus para descrever a proeza dos três aviadores náufragos – um deles, o português Costa Veiga – que, à deriva no Atlântico Norte, foram socorridos in extremis quando, para sobreviverem, até a água do radiador do avião tiveram de beber. E conta-se ainda como um grupo de ricaços, retidos no Faial a bordo de dois Clippers da Pan Am, resolveu publicar um jornal diário até que o mau tempo os deixasse seguir viagem.
É claro que a humanidade nunca deixou de sonhar com o voo, mas a maior parte das vezes estava ocupada com outros assuntos, como escreve o editor Luís Almeida Martins no texto de abertura desta edição da Visão História. Por isso, caros leitores, apertem os cintos. A viagem vai começar.