ISTO É PORTUGAL! - Conservas Pinhais
Origem: Matosinhos
A fábrica da Pinhais, em Matosinhos, é quase um museu. As conservas (de sardinha e cavala) são ainda feitas artesanalmente, como em 1920, quando foi fundada. Nem mesmo o terço deixou de se rezar uma hora antes da saída...
Não há uma palavra, mas há uma pergunta mágica, que abre a porta a memórias antigas - a uma cidade pólo da indústria conserveira nacional; ao cheiro a peixe que invadia as ruas e aos gatos que o perseguiam; aos pescadores que vinham esperar as namoradas na hora da saída; aos tropas que acertavam o relógio para passar à porta das conserveiras em hora de bulício e piscar o olho às meninas.
As mesas de mármore estão ali há 92 anos, a idade da conserveira Pinhais, uma das quatro que sobreviveram, de entre mais de meia centena que chegou a haver em Matosinhos, quando a parte industrial ainda não tinha cedido o lugar a prédios e condomínios de luxo e as conservas davam emprego a mais de 6 mil pessoas. As outras resistentes são a Portugal Norte, a Ramirez e a La Gôndola. Mas a Pinhais é a única a manter o fabrico artesanal.
Entre as colaboradoras, é fácil encontrar quem conte mais de 40 anos de casa. Cortar a sardinha é a primeira etapa. O peixe chega de manhã: «Tanto pode ser às oito como às dez ou ao meio-dia, depende da chegada dos barcos à lota», explica António Pinhal, o neto do fundador da fábrica, que já foi guiada pelo pai e agora o tem a ele, com 57 anos, no leme, com o filho de 23 anos já a ajudá-lo no negócio.
Se o horário da chegada da matéria-prima é incerto é porque quase nada nesta conserveira mudou desde a fundação. O processo de produção mantém-se inalterado desde o primeiro dia (exepção feita à parte da cravação, em que se encerram as latas). Quando às outras fábricas começaram a chegar as câmaras frigoríficas, a família Pinhal resistiu. «A escola que todos nós tivemos é de não haver alterações no processo de fabrico para garantir a qualidade», revela António, o pai (o filho tem o mesmo nome), no escritório da fábrica, entre os móveis antigos que estão ali desde sempre.
Os 6 mil quilos de sardinha que chegam todos os dias, frescos, da lota de Matosinhos (ou caso ali falte, da lota de Aveiro, Peniche, Figueira da Foz...) - e que permitem fechar, a cada jornada, 30 mil latas - têm como destino a salmoura. Depois de lhes cortarem a cabeça, as mulheres transportam as sardinhas em cestas de plástico para um dos 12 tanques, que preservam os azulejos originais a numerá-los, onde ganham tempero. A salmoura é uma solução de água com sal onde passam 45 minutos. Controlar o tempo, ir deitando o sal e, por fim, tirar o peixe do tanque é tarefa de homem. Júlio Ferreira, 55 anos, indica-nos o passo seguinte. Para «engrelhar» voltam a entrar em acção mãos femininas. As sardinhas são colocadas na vertical, de cabeça para baixo (força de expressão, nesta fase já não a têm), numa estrutura de alumínio. O intuito é que «escorram a gordura e a água durante a cozedura», explica-nos Joana Cândido, a técnica de controlo de qualidade, que costuma orientar as visitas. O que pode parecer um pormenor é outro dos segredos que está por detrás do sabor ímpar destas conservas. «Hoje as sardinhas costumam ser cozidas já dentro da lata, o que não permite que libertem a água e a gordura», elucida a guia. Antes de entrarem no forno, ainda serão mergulhadas num tanque de betão original, com água a cair a toda a volta, para retirar o excesso de sal e garantir que não vai nenhuma escama ou resto de tripa agarrada. Os dois fornos são outra relíquia. Foram adaptados, mas são os de origem. Acolhem as sardinhas durante dez a doze minutos, dependendo do tamanho, e cozem-nas a vapor a 110 graus.
O arrefecimento ao ar é obrigatório, só assim lhes é permitida a entrada nas latas. Sozinhas ou acompanhadas... Se tivessem BI, as sardinhas da Pinhais poderiam optar por quatro estados civis: solteiras, mergulhadas apenas em azeite ou azeite picante; ou casadas, com tomate ou tomate picante. As de azeite picante, estas a que estamos a seguir o rasto, vão afinal bem acompanhadas e não chegam sequer a estar sós na lata. Numa pequena linha de montagem, seis mulheres põem, cada uma, seu ingrediente no interior do recipiente. Até serem abertas, as conservas ficarão a apurar o sabor na companhia de uma rodela de cenoura fresca (descascada e cortada também na fábrica), uma rodela de pepino em salmoura, uma malagueta tratada em salmoura também, um pedaço de folha de louro, um traço de cravinho e uma bolinha de pimenta preta.
As operárias que põem a sardinha na lata são especializadas, a operação obedece a um corte específico. Isabel Carmo, 52 anos e 38 de casa, mostra como se faz o corte do rabo e dá a última aparadela ao corpo, dependendo da posição que a sardinha vai ocupar na lata. Antes da entrada na recta final (a única que foi modernizada), vem o «azeitamento». Várias latas ao mesmo tempo são mergulhadas num tabuleiro cheio de azeite virgem, provavelmente de Mirandela, o mais usado (os fornecedores mantêm-se também há décadas). A parte da cravação, em que a lata entra numa máquina que lhe coloca a tampa e a fecha hermeticamente, não tem naturalmente o mesmo charme.
O processo ainda não chegou ao fim. As certificações modernas estão feitas, mas, já no armazém, é realizado novo controlo de qualidade com o método original, que «nunca falha», garantem Juventina Cadilhe e Angelina Ferreira, que têm o ouvido treinado por anos de trabalho. Batem uma lata na outra e o som dá a resposta: se for oco, a lata é destruída, se for um som mais seco, é garantia que tudo está nos conformes.
Além da sardinha, na Pinhais conserva-se cavala inteira picante, filetes de cavala e ovas de sardinha em azeite e azeite picante. Dez variedades que por cá só se podem encontrar em lojas gourmet ou na própria loja da fábrica. Aí, dá para conhecer o bonito hall de entrada com azulejos, uma bela escadaria com corrimão em madeira. A esmagadora maioria da produção (90%) segue viagem além-fronteiras, para mais de 12 países, europeus, americanos, asiáticos. Para António Pinhal, a fé é outra das razões do sucesso. Talvez por isso, todos os dias à tarde, uma hora antes da saída, os funcionários continuem a ouvir e a rezar o terço enquanto trabalham. Aqui a tradição é sagrada.
(retirado do artigo "Bem conservada..." publicado na VISÃO SETE da edição nº 1028 da revista VISÃO)