SANGUE LUSO - Dulce Maria Cardoso
(por Nicolau Santos, jornalista)
Eu não sabia quem era Dulce Maria Cardoso até ao ano passado. Mas sei muito bem o que se passou em Angola nos anos da brasa de 1974/75. E sei que ela escreveu o melhor romance que li até agora sobre o regresso caótico de mais de 400 mil pessoas daquela ex-colónia por causa da independência. "O Retorno" merece cada um dos prémios que ganhou: foi considerado o melhor livro do ano pela crítica, recebeu o prémio especial da crítica nos prémios LER/Booktailors 2011 e acumulou várias outras distinções. A escritora foi distinguida pelo Ministério da Cultura francês com a Ordem das Artes e das Letras. É um romance escrito à flor da pele.
Nascida em Trás-os-Montes, a escritora viveu a sua infância em Angola, de onde regressou no meio do turbilhão dos retornados. São essas memórias, as palavras, os cheiros, o sangue, o ódio, a raiva, a incompreensão, que passam pelas páginas de "O Retorno", num retrato quase jornalístico, muitas vezes dramático, que ficou gravado a ferro e fogo nas memórias de todos os que passaram pelo acontecimento que mudou brutalmente as suas vidas. Estão lá os caixotes de madeira a acumular-se no porto de Luanda, as filas de brancos que os guardavam noite e dia até os verem finalmente em segurança nalgum barco que os havia de trazer para a metrópole, a fome a alstrar pela cidade, o lixo a acumular-se nas ruas, os milhares que se acotovelavam no aeroporto de Luanda, dormindo pelo chão, o cheiro de calor e urina a subir pelas paredes numa imundície caótica, os choros convulsivos das mulheres, as corridas das crianças, os homens de olhar vazio, cães, gatos, cabras, papagaios a vaguear ou em gaiolas, numa cacofonia contínua.
É tudo isto que, num romance empolgante e arrasador, permite a Dulce Maria Cardoso ganhar definitivamente direito à entrada no panteão dos grandes escritores de Língua Portuguesa.
(retirado do artigo "Os 100 + influentes - Criadores" publicado na edição nº 2071 da REVISTA do jornal Expresso)