Portugal Genial: O Manguito de Raphael Bordallo Pinheiro
"Marido de Maria Paciência, senhor dos seus 50 anos, nascido do constitucionalismo, onde a sua mãe teria sido a carta e o seu pai o parlamentarismo, Zé Povinho, de calças remendadas e botas rotas, constitui um símbolo anti-exemplar da nossa profunda cultura nacional.
O nosso tio Sam, o nosso John Bull, reúne em si a alma romântica e generosa de um povo que assenta as suas vitórias numa conveniente anarquia universal, numa indiferença histórica, ignorante e sofrida.
Com um imenso formigueiro nas mãos, curso de ouvidor, actor, boémio, menino do papá que lhe encontrou um lugar na Câmara dos Pares e onde começou a ganhar 25 mil réis, Raphael Bordallo Pinheiro, português, acutilante e genial, cedo percebeu que as intrigas políticas que observava nos bastidores constituiriam a matéria-prima para aquela que veio a ser a sua grandiosa obra e cujo símbolo maior se viria a chamar Zé Povinho.
Raphael Bordallo Pinheiro foi um homem absolutamente genial, tendo alcançado fama nacional e internacional como exímio caricaturista, ceramista e decorador. Editou e dirigiu diversas publicações de natureza satírica, entre as quais se destacam o Calcanhar de Aquiles e a Lanterna Mágica. Foi nesta que, a 12 de Junho de 1875, viria a aparecer retratado pela primeira vez o nosso Zé.
No Brasil, publica o Mosquito, Psit!!! e o Bezouro. E, de regresso a Portugal, o António Maria, inspirado no nosso estadista António Maria Fontes Pereira de Melo.
Acutilantemente crítico, mas profundamente nacionalista, recusou diversos convites do estrangeiro, tendo, no entanto, colaborado com inúmeras publicações na Europa e sido homenageado com múltiplos prémios. Foi o primeiro português a criar histórias com sequências lógicas, dando origem àquilo que hoje se designa como banda desenhada.
Mas o seu sentido intervencionista e o seu desmedido talento fizeram-no ainda deitar mãos a outras artes. Nas Caldas da Rainha, veio a revolucionar a velha indústria da Cerâmica, transmitindo-lhe um carácter único, que se mantém até aos dias de hoje.
Raphael Bordallo Pinheiro morreu há 100 anos. Deixou-nos, contudo, além da sua inesgotável genialidade, uma mensagem arrepiantemente actual. O seu Zé, o nosso Zé, símbolo grotesco de um povo acomodado, da abstinência à iniciativa, da ausência de culturiosidade, do fatalismo que serve todas as causas, é também um Zé idealista, emotivo, humano, hospitaleiro, saudosista, fanático de futebol e que acabaria por se mostrar cheio de coragem, dando pontapés libertadores e fazendo manguitos.
Deixa-nos, sobretudo, um apelo à nossa consciência colectiva, no sentido de cultivarmos o nosso lado irreverente, o nosso inconformismo, o nosso idealismo e a nossa virilidade, mostrando que não temos qualquer preconceito em fazer um grande manguito a tudo aquilo que nos pareça que não vem por bem para Portugal."
(Fevereiro 2005)
Excerto do texto "O Manguito de Raphael Bordallo Pinheiro", in "Portugal Genial", de Carlos Coelho